Entenda a lei que pune o genocídio; lugar de Bolsonaro e outros é a cadeia

Entenda a lei que pune o genocídio; lugar de Bolsonaro e outros é a cadeia

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Reinaldo Azevedo – Flávio Dino, ministro da Justiça, determinou que a Polícia Federal abra inquérito para apurar se houve os crimes de genocídio, omissão de socorro e desvio de recursos na crise humanitária que colhe o povo ianomâmi. Destaque-se que a omissão de socorro e o desvio de recursos, embora crimes autônomos, podem ser duas das maneiras empregadas para a prática do genocídio. Já antevejo alguns a esbravejar, sustentando que, a despeito dos outros crimes, não estaria caracterizado o genocídio. Não? Estão vamos ver.

Segundo o Artigo 1º da Lei 2.889, de 1956, comete crime de genocídio
Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

No que respeita à pena, essa lei tem uma particularidade, de que tratarei daqui a pouco.

Abordei ontem aqui o crime de genocídio, segundo o Estatuto de Roma, para efeitos de julgamento e punição pelo Tribunal Penal Internacional, corte em que, entendo, Jair Bolsonaro também deve ser punido. Estabelece o Artigo 6º do Estatuto:

Para os fins do presente Estatuto, entende-se por “genocídio” qualquer um dos atos mencionados a seguir, praticados com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal:
– Matar membros do grupo;
– Causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
– Submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física, total ou parcial;
– Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
– Efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

Observem que o conteúdo é praticamente o mesmo. Há um entendimento quase universal do que caracteriza um “genocídio”. E, na raiz do crime, está a intencionalidade. E é nesse ponto que se abrem as portas do debate.

INTENÇÃO E RISCO DO RESULTADO

Comecemos pelo óbvio. A responsabilização civil do Estado brasileiro na tragédia que colhe o povo ianomâmi é inquestionável. Está dada. Políticas públicas, ou sua ausência, empreendidas pelo governo resultaram naquilo que se vê. Como costumo dizer, aludindo a certo pensador, a realidade que vem à luz não cai da “árvore dos acontecimentos”. Foi produzida.

A responsabilização civil do Estado brasileiro não pode, no entanto, ser a porta larga da impunidade, de sorte que sucessivos governantes e aplicadores de políticas públicas possam cometer crimes em penca contra populações originárias sem que sobre eles recaia a o peso da lei. E isso nos devolve à palavra “intenção”, presente tanto na lei brasileira como no Artigo 6º do Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional.

Será que Jair Bolsonaro ou quaisquer pessoas que estiveram a seu serviço no trato da questão indígena admitirão, em alguma instância, que atuaram com o propósito de destruir total ou parcialmente uma comunidade? É evidente que não.

Pergunta-se, no caso da investigação que se abre no Brasil: os que, no governo ou a seu serviço, atuaram, por ação ou omissão, sob o risco de produzir o resultado que se vê cometeram ou não o crime — no caso, de genocídio? A resposta é escancaradamente “sim”.

– os responsáveis pela Secretaria Especial de Saúde indígena eram militares sem nenhuma experiência na área ou conhecimento de causa;
– o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) estava sob o comando de apadrinhados políticos do bolsonarismo em Roraima — também sem experiência na área;
– há evidências em penca de malversação de recursos públicos e corrupção;
– o Ministério Público Federal dispõe de provas de que órgãos do governo agiram de modo deliberado para esconder a gravidada da situação;
– é possível colecionar frases do presidente em favor do garimpo ilegal. Hoje, a chamada “TIY” (Terra Indígena Yanomami) abriga estimados 29 mil indígenas e pelo menos 20 mil garimpeiros, que foram ocupando o território sem nenhuma forma de ação repressiva;
– longe de reprimir o garimpo, o governo tomou a iniciativa de impedir que a Polícia Federal destruísse, como se fazia, a infraestrutura que servia à ilegalidade;
Bolsonaro cometeu o despropósito de visitar, em Roraima, ainda que não na “TIY”, um garimpo ilegal em terra indígena;
– Dário Kopenawa Yanomami, uma das lideranças da comunidade, esteve pessoalmente com Hamilton Mourão, então vice-presidente e coordenador do Conselho Nacional da Amazônia, e denunciou a grave situação do seu povo, especialmente em razão do garimpo ilegal. Nada aconteceu;
– a ONU, por intermédio do Alto Comissariado para os Direitos Humanos, fez vários alertas para a agressão aos povos indígenas, também os ianomâmis, e não se viu providência nenhuma a respeito;
– não é segredo para ninguém, muito especialmente para as alas mais reacionárias do seu eleitorado, que Bolsonaro venceu as eleições em 2018 com uma pauta escancaradamente anti-indígena;
– ainda agora, evidenciada a tragédia com fartura de provas, Bolsonaro estimula suas milícias digitais a afirmar que tudo não passa de uma tramoia urdida pelas esquerdas.

“Ah, mas foi uma ação deliberada para matar ianomâmis?” A pergunta não é essa, reitero: os que atuaram, na cadeia de comando, incluindo o presidente da República, sabiam ou não que o resultado poderia ser este que se vê agora? Respondo com uma outra pergunta, que vale por uma afirmação: como não saber?

A PENA
A lei que pune genocídio no Brasil tem uma particularidade: ela não estabelece uma pena para esse crime em particular, mas evoca punições espalhadas em Artigo do Código Penal, lembrando que elas são, obviamente, cumulativas. Ainda o Artigo 1º da Lei 2.889 prevê:
Será punido:
– com as penas do artigo 121, §2º do Código Penal, no caso da letra a;
– com as penas do artigo 129, §2º, no caso da letra b;
– com as penas do artigo 270, no caso da letra c;
– com as penas do artigo 125, no caso da letra d;
– com as penas do artigo 148, no caso da letra e.

Para lembrar: Art.121: homicídio; Art.129: ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem; Art. 270: envenenamento de água, comida ou medicamento; Art.125: provocar aborto sem consentimento da gestante; Art.148: privar alguém da liberdade mediante sequestro.

E a situação dos condenados pode se complicar anda mais nestes casos:
Art. 2º – Associarem-se mais de três pessoas para prática dos crimes mencionados no artigo anterior:
Pena – metade da cominada aos crimes ali previstos.

Art. 3º – Incitar, direta e publicamente, alguém a cometer qualquer dos crimes de que trata o artigo 1º
Pena – metade das penas ali cominadas.
§1º: A pena pelo crime de incitação será a mesma de crime incitado, se este se consumar.
§2º: A pena será aumentada de um terço, quando a incitação for cometida pela imprensa.

Art. 4º – A pena será agravada de um terço, no caso dos artigos 1º, 2º e 3º quando cometido o crime por governante ou funcionário público.

Art. 5º – Será punida com dois terços das respectivas penas a tentativa dos crimes definidos nesta Lei.

CONCLUO
A lei, como se nota, é bastante severa. As ações deliberadas — porque foram escolhas feitas por gestores públicos — redundaram na “destruição parcial” de uma comunidade. Segundo o texto legal, ainda que tivesse havido apenas a tentativa, já caberia punição. “Mas como se prova a intenção, Reinaldo, se o indivíduo não a confessa — e é claro que não haverá a confissão de que se tentou destruir os ianomâmis?”. Bastará evidenciar que outras não poderiam ser as consequências e que se correu o risco de produzir o resultado, inclusive quando se ignoraram os sucessivos alertas para a gravidade do que estava em curso.

Genocídio, sim. E seus praticantes são genocidas.

*Uol

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