Darcy Ribeiro não deixaria André Mendonça citar seu nome em vão

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Se estivesse vivo, antropólogo pediria direito de resposta a ministro indicado por Bolsonaro.

O ministro André Mendonça levou dois dias para ler seu voto a favor do marco temporal. A tese inexiste na Constituição, mas está em debate no Supremo. Se aprovada, pode inviabilizar a demarcação de terras indígenas no país.

A opinião do ministro “terrivelmente evangélico” não surpreendeu. Ele foi indicado por um presidente que hostilizou os povos originários e incentivou a mineração ilegal em seus territórios. Ainda assim, houve espanto quando Mendonça citou aliados da causa indígena para defender o contrário do que eles pregavam.

A principal vítima do truque foi Darcy Ribeiro, mencionado nove vezes em 203 páginas de voto. Morto em 1997, o antropólogo não pode pedir direito de resposta. Mas é seguro dizer, com base em suas próprias palavras, que ele não deixaria barato.

“O que os índios pedem? A garantia da posse tranquila das terras, das matas, das águas onde eles vivem. E o direito de de viver segundo seus costumes”, sintetizou Darcy em 1991, em entrevista na TV Cultura.

“Eles estão a nos dizer, desde sempre: só queremos um pedaço da muita terra que tínhamos, porque a necessitamos para sobreviver”, escreveu cinco anos depois, em artigo na Folha de S.Paulo.

Em 1995, o antropólogo foi à tribuna do Senado e relatou um diálogo com o cacique Juruna, a quem definiu como muito inteligente. “Um dia ele me perguntou: ‘Darcy, quem é que inventou o papé?’ Tentei explicar como se fabrica papel, com madeira. Ele disse: ‘Não, papé de verdade’, acrescentando: ‘A gente está lá, sempre esteve lá, chega um com o papé e é o dono’.”

“Observem o agudo sentido do Juruna para perceber a força cartorial, a força burocrática, que permite a alguém criar concessões de terras sem limites para quem nunca as viu, expulsando de lá quem as cultiva desde sempre. O Brasil é feito, em grande parte, dessa realidade”, emendou.

No livro “O Brasil como problema”, de 1990, Darcy expôs a hipocrisia por trás das críticas às demarcações. “Pessoas que não se preocupam com o fato de que particulares tenham propriedades de até um milhão de hectares, que mantêm inexploradas numa operação puramente especulativa, não estão dispostas a dar aos índios aquilo que é a condição de sua sobrevivência: terras que a nossa Constituição reconhece que são deles. Para isso, estão dispostos a levá-los ao extermínio. Essa postura corresponde à pior tradição brasileira”.

Na ausência do professor, a Fundação Darcy Ribeiro se manifestou sobre o julgamento em curso no Supremo. Para a entidade, que guarda o acervo do antropólogo, o marco temporal é uma “tese anti-indígena” porque significa “a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra”. A nota foi divulgada em junho, dois meses antes do voto de Mendonça.

Vai piorar

Quem se irritou com Nunes Marques e André Mendonça deve preparar o espírito para ouvir Gilmar Mendes. Na quinta-feira, em aparte a um colega, o supremo ministro defendeu o garimpo em terras indígenas. Como decano da Corte, ele será o penúltimo a votar sobre o marco temporal. O julgamento deve ser retomado no dia 20.

*Bernado Mello Franco/O Globo

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