Valdemar, um amador, se torna, sem querer, testemunha de armação golpista

Valdemar, um amador, se torna, sem querer, testemunha de armação golpista

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Ai, ai…

Reinaldo Azevedo – Como é mesmo aquela frase, adaptada de uma fala de Tom Jobim? “O Brasil não é para amadores”. O gênio da nossa música disse, na verdade, “principiantes”. A troca do adjetivo submete o sentido original a uma torção talvez nada ligeira. Jobim talvez quisesse chamar a atenção para a necessidade da “expertise”. Da forma como a coisa se popularizou, é provável que exista certo convite à malandragem. E isso me coloca no tema do texto: Valdemar Costa Neto.

O presidente do PL, que tem mais folha corrida na política brasileira do que biografia, concedeu uma entrevista ao Globo em que tenta, de maneira muito particular, livrar a cara de Jair Bolsonaro, buscando distanciá-lo, para a crença de ninguém — nem dos admiradores do seu ora protegido —, das articulações golpistas. E o fez bem à sua maneira… Um modo, assim, “à Valdemar”…

Segundo disse, o ex-presidente jamais vocalizou a intenção de desrespeitar o resultado das urnas. Como? É verdade que, na maioria das vezes, ele respondeu aos acampamentos golpistas com silêncios eloquentes, que davam sempre a entender, como seus fanáticos não cansavam de vocalizar, que algo iria acontecer, que o “capitão” mandaria o sinal…

No dia 11 de dezembro, no Palácio da Alvorada, 19 dias antes de fugir do Brasil, ao falar a apoiadores, o verdadeiro Jair, como o falso Messias de sempre, afirmou a um destacamento golpista que foi ouvi-lo:
“Quem decide o meu futuro e para onde eu vou são vocês. Quem decide para onde vai [sic] as Forças Armadas são vocês. Quem decide para onde vai a Câmara, o Senado, são vocês também”.

E acrescentou:
“Vamos vencer. Se Deus quiser, tudo dará certo no momento oportuno.

Não há por que desconfiar de que, na imaginação delirante, o “momento oportuno” era o dia 8 de janeiro. Como esquecer a fala de Braga Netto, vice na chapa derrotada de Bolsonaro, ao abraçar, no dia 18 de novembro, uma seguidora que estava aos prantos? “Vocês não percam a fé; é só o que eu posso falar para vocês agora”. Tinha acabado de se encontrar com o ainda presidente. O que ele não “podia falar” se viu no dia da barbárie…

O TRUQUE PELA CULATRA
“Ah, silêncios e palavras ambíguas não vinculam Bolsonaro à tentativa golpista e aos atos terroristas…” É uma linha de defesa fácil de desarmar, mas nem entro nesse mérito agora. Um fato gritante: a minuta do golpe, encontrada na casa de Anderson Torres, torna tudo mais complicado. Ainda que a peça seja uma estupidez jurídica, é coerente na sua loucura e evidencia uma tentativa de dar um autogolpe com aparência de legalidade. Por que o faz-tudo do “capitão” guardava aquele documento? Quem o redigiu? Foi debatido com quem? Ele explica aquelas mensagens silenciosas ou nem tanto a anunciar: “A hora está chegando”.

Bem, Valdemar precisa de uma explicação para aquele troço. E é aí que ele, no afã de resgatar o afogado, se joga em seus braços. Afirmou o presidente do PL:
“Ele [Bolsonaro] nunca falou nesses assuntos comigo [contestar o resultado da eleição]. Um dia eu falei: ‘Tudo que temos que fazer tem que ser dentro da lei.’ Ele falou: ‘Tem que ser dentro das quatro linhas da Constituição’. Nunca comentei, mas recebi várias propostas, que vinham pelos Correios, que recebi em evento político. Tinha gente que colocava [o papel] no meu bolso, dizendo que era como tirar o Lula do governo. Advogados me mandavam como fazer utilizando o artigo 142, mas tudo fora da lei. Tive o cuidado de triturar. Vi que não tinha condições, e o Bolsonaro não quis fazer nada fora da lei. A pressão em cima dele foi uma barbaridade. Como o pessoal acha que ele é muito valente, meio alterado, meio louco, achava que ele podia dar o golpe. Ele não fez isso porque não viu maneira de fazer. Agora, vão prendê-lo por causa disso? Aquela proposta que tinha na casa do ministro da Justiça, isso tinha na casa de todo mundo. Muita gente chegou para mim agora e falou: ‘Pô, você sabe que eu tinha um papel parecido com aquele lá em casa. Imagina se pegam’.”

Sei, sei… Quer dizer que também Valdemar estava cercado de golpistas por todos os lados, e minutas de golpes estavam na “casa de todo mundo”? Ora, cumpre indagar: “todo mundo” quem? Ignorem-se aqueles que enfiavam a mão no bolso do presidente do PL — sempre pensei que se desse o contrário — porque supostamente anônimos. A propósito, leitor, cuidado! Sentindo algo estranho, verifique se ninguém resolveu adentrar aquele saco de pano costurado na parte interna de sua roupa… Havia advogados evocando o Artigo 142 para contestar o resultado da eleição? Que coisa, hein!?

A repórter do Globo pergunta em seguida:
“Essas propostas circulavam entre pessoas do governo?”

E ele responde:
“Direto. Teve advogada que veio conversar comigo dizendo que tinha uma saída. Eu dizia: ‘Põe no papel e manda para cá’. E eu não dava bola porque eu sabia que não tinha. E o Bolsonaro não fez. O pessoal queria que ele fizesse errado”.

Valdemar está confessando que esteve, ainda que como personagem passiva, no interior de uma arquitetura golpista. Não há como, pois, ele não ser convocado a depor como testemunha, ocasião, então, em que não tem direito ao silêncio. Lembro o Artigo 342 do Código Penal:
“Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.”

VALDEMAR, O SINGELO
Valdemar tem uma dúvida. A entrevistadora pergunta:
“O senhor acredita que Bolsonaro possa ficar inelegível?”
E ele responde:
“Não vejo chance. Tem vários processos contra ele, como qualquer presidente que sai. Vai condenar por quê? Por que ele falou isso ou aquilo? Não tem cabimento. Que crime ele cometeu? Isso é uma loucura.”

Cumpre lembrar a Valdemar algumas das 16 ações contra Bolsonaro que estão do TSE:
– o que apura encontro com embaixadores estrangeiros para ameaçar o processo eleitoral;
– o que trata do uso eleitoreiro dos programas sociais, desrespeitando a Constituição e a Lei Eleitoral;
– o que investiga a rede de desinformação que passava pelo Palácio do Planalto.
A minuta golpista foi anexada à ação que apura a rede de desinformação.

A chance de Bolsonaro escapar da inelegibilidade é muito pequena. Quanto à cadeia — e Valdemar pergunta por que alguém prenderia o presidente —, responda-se assim: tudo vai depender do próprio Bolsonaro. Ele continuará a incitar manifestações golpistas? Convém lembrar que ele retuitou — e apagou em seguida — uma mensagem contestando a legitimidade da eleição mesmo depois dos atos terroristas do dia 8 de janeiro. Se continuar a incitar o golpismo, por que não se decretaria a sua prisão preventiva?

Os bolsonaristas de Orlando estão anunciando nas redes sociais “O Grande Encontro com o Capitão Bolsonaro” para o próximo dia 31. Sei lá se vai acontecer. Os ingressos variam de U$ 10 a U$ 50. Os organizadores pedem ainda doações de U$ 20, U$ 50 e U$ 100. O visto do ex-presidente expira no dia 30, e consta que ele entrou com o pedido para estendê-lo a 90 dias, na condição de turista.

Digamos que o evento ocorra e que ele decida, mais uma vez, fazer um discurso golpista. Aí cabe a decretação da prisão preventiva mesmo. Mato, assim, a curiosidade de Valdemar, aquele que há de depor como testemunha, sem direito ao silêncio.

Não há dúvida de que Valdemar é, em muitos aspectos, um “profissional”. Nessa entrevista, comportou-se como amador.

*Uol

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