Moretti, Ocké e Funcia: Bolsonaro tira R$ 16 bi da saúde e ciência para comprar parlamentares da base aliada

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Sem mudanças, o pior ainda está por vir após as eleições presidenciais. O projeto de orçamento para 2023 será formulado e encaminhado ao Congresso em 2022 pelo atual governo e já há indicações do que pode ocorrer no próximo ano.

Afinal, o projeto de lei de diretrizes orçamentárias (LDO), recentemente sancionado pelo presidente, orienta a elaboração da lei orçamentária de 2023.

Não deixa de ser, portanto, um instrumento interessante para indicar a visão do atual governo sobre áreas estratégicas à sociedade brasileira no próximo ano.

Neste sentido, vale estimar o impacto de dois vetos e um dispositivo sancionado pelo poder executivo.

O primeiro veto se refere a uma regra de aplicação mínima em ações e serviços públicos de saúde para 2023 que considera, além da inflação oficial projetada para 2022, o orçamento e o crescimento da população para o referido ano.

A regra não resolve todos os problemas de financiamento, mas permite algum crescimento do gasto em 2023 para atender às necessidades de saúde, que foram ampliadas pelo desfinanciamento do SUS a partir da Emenda Constitucional (EC) 95/2016 e agravadas após a pandemia da Covid-19.

De um lado, seguem em curso pressões estruturais, como os impactos sobre o sistema de saúde da transição demográfica.

De outro, questões conjunturais pressionam o SUS, como os efeitos negativos da Covid-19 sobre as condições de saúde da população, especialmente pelo negacionismo, agora silencioso (talvez pelo período eleitoral), materializado pela falta de vacinas para imunizar crianças de três a quatro anos.

A regra contida na LDO implicaria, segundo nossas estimativas, um piso de R$ 162,3 bilhões, R$ 12,6 bilhões acima do mínimo estabelecido pela EC 95/2016 para 2023, dado pelo piso de 2022, atualizado pela inflação oficial do mesmo ano, resultando em um valor de R$ 149,7 bilhões, conforme o gráfico 1.

No gráfico 1, evidencia-se não apenas a perda de R$ 12,6 bilhões em função do veto presidencial ao piso de saúde da LDO para 2023, mas também o fato de que o piso da EC 95/2016 é inferior ao orçamento de saúde para 2022.

Em outros termos: a tendência é que o projeto de lei do orçamento para 2023 seja elaborado com redução nominal de recursos para a saúde, apesar das demandas crescentes.

Além disso, parcela do orçamento seria comprometida com emendas parlamentares (inclusive, com emendas de relator), agravando a situação do financiamento do SUS e deteriorando a tão falada “qualidade do gasto”, pelo fato de que tais emendas não estão necessariamente associadas às necessidades de saúde e aos Planos de Saúde da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Outro veto que comentaremos se refere ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT.

O fundo é um dos principais mecanismos de indução da inovação e do desenvolvimento científico e tecnológico no país.

A LDO aprovada pelo Congresso previu que, para 2023, o limite de recursos reembolsáveis, voltados a empréstimos a empresas, seria de 15% do orçamento do fundo.

Tais recursos são financeiros e não impactam as regras fiscais. Pelo menos 85% dos recursos seriam não reembolsáveis, consistindo de despesas primárias que servem principalmente para apoiar projetos de instituições de pesquisa e universidades.

O dispositivo foi vetado, de modo que se aplicará o limite estabelecido pela Lei no 11.540/2007, de até 50%.

Assim, estima-se que os recursos não reembolsáveis serão R$ 3,7 bilhões menores do que os obrigatórios, caso valesse a regra da LDO, vetada pelo Executivo , prejudicando instituições de ciência e tecnologia e projetos estratégicos ao desenvolvimento do país.

Convém assinalar que os recursos reembolsáveis têm baixa execução (até meados de agosto, não há recursos empenhados em 2022), já que as empresas não tomam os empréstimos à taxa de juros vigente.

Com isso, os valores ficam esterilizados, convertem-se em superávit financeiro e são canalizados para amortização da dívida pública, conforme autorização da EC 109/2021.

O recurso voltado a financiar a ciência é drenado para o circuito financeiro, em favor dos proprietários de riqueza financeira sob a forma de títulos públicos.

O governo, nas razões de veto, alega que os recursos não reembolsáveis do FNDCT e o piso previsto para a saúde na LDO em 2023 impactam o teto de gastos.

A mesma justificativa se aplica aos vetos a dispositivos da educação, que apenas pretendiam garantir a reposição inflacionária de recursos para alimentação escolar, bolsas de permanência, universidade e institutos federais. Contudo, esse argumento não foi utilizado para as emendas de relator.

Não houve veto ao dispositivo segundo o qual tais emendas (orçamento secreto) serão previstas na reserva de contingência do orçamento encaminhado ao Congresso.

Segundo a regra vigente, o orçamento secreto poderá ter dotação de até R$ 18 bilhões (considerando o IPCA esperado pelo mercado). Ainda assim, não houve veto sob a alegação de impacto sobre as regras fiscais.

Continua prevalecendo em sentido forte o que já denominamos como austeridade seletiva: as regras fiscais são arbitrariamente utilizadas como fundamento técnico para a decisão política de descontruir áreas centrais ao desenvolvimento do país, como saúde, educação e ciência e tecnologia (C&T), enquanto o orçamento absorve despesas de natureza clientelista, favorecendo grupos com acesso privilegiado ao orçamento público, com desdobramentos sobre a disputa eleitoral deste ano.

As perdas com os vetos de saúde e C&T, estimadas em R$ 16 bilhões, são da mesma ordem de grandeza do limite para reserva de contingência das emendas de relator.

Sendo assim, não é desarrazoada a leitura de que os referidos vetos financiarão o orçamento secreto. Afinal, o orçamento que limita as possibilidades do SUS, da educação e da ciência é o mesmo que paga pela desconstrução do país.

A combinação de austeridade fiscal e fisiologismo no uso dos recursos públicos une o mercado, o “centrão” e a extrema direita na captura do orçamento, para desconstruir as instituições portadoras de um futuro mais inclusivo ao país.

Nesse contexto, é importante desnaturalizar o pressuposto de que a austeridade reflete a falta de capacidade financeira do Estado brasileiro e o aumento da despesa requer arrecadação prévia.

A recente Emenda Constitucional que autorizou despesas fora do teto para pagamento de benefícios próximo ao período eleitoral é apenas mais uma evidência da seletividade do controle fiscal.

É preciso compreender definitivamente a natureza e o tamanho da expansão fiscal ocorrida durante a pandemia, demonstrando a capacidade e a necessidade de realização de gastos pelo governo central ainda que sem cobertura prévia de tributos, especialmente em momentos de crise, nos quais os agentes privados tendem a reduzir despesas.

O governo federal liquida sua dívida na moeda que emite, sendo capaz de efetuar sua rolagem.

Os dados de junho de 2022 mostram que a reserva de liquidez do Tesouro para pagamento da dívida pública segue em níveis confortáveis, mais de duas vezes acima do limite prudencial.

Ademais, o setor público dispõe de ativos (especialmente as reservas internacionais), que ampliam a robustez do seu balanço do ponto de vista líquido (considerando não apenas a estrutura de financiamento do seu passivo como também seus ativos) e reduzem sua fragilidade financeira.

As atuais restrições fiscais brasileiras não refletem um problema técnico ou financeiro, mas um projeto político de redução do Estado e da oferta de serviços públicos no Brasil, especialmente os universais, induzindo a sua mercantilização.

É urgente mudar as regras fiscais e reformar o orçamento brasileiro, reconectando-os com os interesses populares e nacionais.

Sem prejuízo das mudanças estruturais, é imperativo começar pela derrubada dos vetos que retirarão mais recursos da saúde, da ciência e da educação em 2023.

Com a palavra, os(as) representantes do povo brasileiro no parlamento.

*Bruno Moretti, economista e assessor legislativo.

*Carlos Ocké-Reis, economista, doutor pelo Instituto de Medicina Social Hésio Cordeiro e pós-doutor pela Yale School of Management.

*Francisco R. Funcia, economista e vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde/ABrES.

*Viomundo

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