Tiradentes e o léxico da ideologia golpista

Tiradentes e o léxico da ideologia golpista

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Ângela Carrato*

Engana-se quem acredita que a decisão do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), de atribuir a Medalha da Inconfidência, no seu grau máximo, ao golpista Michel Temer tem a ver apenas com suas predileções pessoais.

Claro que ela envolve a sua pretensão de ser candidato à presidência da República em 2026, porém o objetivo é mais ambicioso.

Além de Temer, Sérgio Moro foi outro agraciado. Aos dois se somam algumas dezenas de políticos, integrantes do Judiciário e personalidades conservadoras que receberam distinções em graus variados.

Para não ficar evidente o caráter dado à condecoração, alguns nomes de figuras progressistas também entraram na lista.

Essa ação de Zema faz parte do projeto das forças conservadoras brasileiras (direita e extrema-direita) de recontarem à sua maneira a história recente do país e tentarem tirar proveito disso.

Projeto que é materializado na busca pela construção de imagens mais palatáveis para desgastadas figuras públicas e de dotar de novo sentido conceitos, palavras e verbos que têm marcado o cotidiano da população brasileira.

É o caso do termo golpista, popularmente associado a Temer e a Moro, pelo papel que tiveram na destruição da democracia brasileira e na abertura de espaço para o surgimento de uma figura abjeta como Jair Bolsonaro.

É o caso de palavras como corrupção, deus, pátria, família e símbolos nacionais que foram apoderadas pelos que se auto intitulam “patriotas”, “democratas” e “cidadãos de bem”.

Pessoas que vem disseminando negacionismo contra a ciência e discurso de ódio, que estão na raiz de milhares de mortes pelo vírus da covid-19, da destruição do meio ambiente e da violência contra mulheres, negros, indígenas, escolas e crianças.

As investigações envolvendo os episódios terroristas do 8 de janeiro estão contribuindo para desmascarar estes falsos patriotas, mas exatamente aí que ganha corpo essa tentativa para influir na política, através de nova conotação para nomes como Temer e Moro.

Situação que passa, entre outras coisas, por dissociá-los de Bolsonaro.

Mas o que Tiradentes tem a ver com isso?

A Medalha da Inconfidência é a mais alta comenda concedida anualmente pelo governo de Minas Gerais no dia 21 de abril, data do enforcamento de Tiradentes e marco do movimento de independência que teve como lugar a cidade de Ouro Preto, no século XVIII.

Criada em 1952 pelo governador Juscelino Kubitscheck, ele institui que sempre nesta data a capital do Estado deveria simbolicamente ser transferida para Ouro Preto.

A comenda possui vários graus. Em geral são agraciados políticos, juristas, magistrados, empresários, professores, lideranças sindicais, intelectuais e artistas. Nomes que, supostamente, tiveram atuação em defesa de Minas Gerais e do Brasil.

A luta dos inconfidentes contra a metrópole portuguesa entrou para a história do Brasil como um dos seus momentos mais altos.

Não por acaso, Tiradentes, seu mártir, foi erguido à condição de herói nacional e o lema dos revoltosos, a frase latina libertas quae sera tamem (liberdade ainda que tardia), figura na bandeira de Minas Gerais.

Dos heróis da Inconfidência, Tiradentes era o único que não pertencia à elite. Simples alferes vinha de família pobre e ganhava a vida arrancando dentes. Daí a alcunha que passou a acompanhá-lo.

Sua indignação contra a coroa portuguesa tem a ver com a vida e as diversas atividades que exerceu a exemplo de tropeiro, minerador, comerciante, militar e ativista político.

O lugar que cabe a Tiradentes na história do Brasil é o de herói que deu a vida na luta contra os poderosos e pela independência, que viria a acontecer só bem mais tarde, em 1822.

Mesmo com a independência, Tiradentes permaneceu relativamente obscuro, pois o país continuou sendo uma monarquia regida pela Casa de Bragança, e os dois imperadores, Pedro I e Pedro II, eram descendentes de D. Maria I, contra a qual Tiradentes conspirara e que havia assinado sua sentença de morte.

Só com o advento da República, em 1899, que Tiradentes passou a ser considerado herói nacional.

É importante lembrar que vê-lo como mártir foi uma postura dos republicanos com a intenção de ressignificar a identidade brasileira.

Se a memória de Tiradentes foi reverenciada pelo progressista JK, o marechal golpista Humberto de Alencar Castelo Branco, em 1965, durante o primeiro governo da ditadura militar, tornou 21 de abril feriado nacional e Tiradentes oficialmente Patrono da Nação Brasileira.

Isso deixa nítido como os setores conservadores tentaram mudar o sentido da luta e da figura de Tiradentes. De inimigo da opressão, virou patrono nacional nas mãos dos opressores, que tentavam, assim, limpar suas próprias imagens.

Nada mais distante da luta de Tiradentes do que o golpe de 1964, que instituiu uma ditadura, prendeu, torturou e matou seus opositores e subordinou o país aos interesses dos Estados Unidos.

Daí palavras como independência, liberdade política e liberdade religiosa terem sido tão caras aos inconfidentes, amantes do conhecimento e fortemente influenciados pelos ideais iluministas.

É importante observar, por outro lado, que a disputa pelo controle do significado de algumas palavras em nossa língua não é de agora, mesmo que só recentemente tenha começado a se falar em “guerra cultural” ou “léxico da ideologia conservadora”.

É nesse quadro que deve ser entendida a disputa travada pelas forças das quais Zema faz parte.

Disputa que envolve a apropriação de símbolos, de heróis, de conceitos e de palavras que representam avanços científicos e civilizatórios, verdadeiros marcos de lutas populares, e procurar dotá-las de sentido inverso. Ou de ressignificá-las segundo a conveniência destas forças.

Quando o tempo já havia dirimido as dúvidas da maioria da população de que o movimento militar de 1964 foi um golpe contra a democracia e não uma revolução como sempre apregoaram militares e forças conservadoras, entra em cena outro golpe, o desferido contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

Golpe que os setores conservadores insistem em chamar de impeachment, mesmo não tendo havido crime de responsabilidade.

Como não seria aceitável dizer que a deposição de Dilma teve a ver com o descontentamento destas forças em relação a perdas de seus privilégios e com a cobiça despertada no exterior pelo descobrimento do pré-sal, foi essencial venderem para a sociedade a ideia de que representam “o lado certo da história”, de que “são democráticos”, que seus adversários não passavam de “corruptos”, “incompetentes”, “gastadores” e “inimigos de Deus, da pátria, da família”.

Era fundamental travestir o golpe em impeachment.

Temer foi o vice que conspirou contra Dilma e que, uma vez no poder, passou a implementar um programa de governo oposto ao eleito pela população.

A tal “Ponte para o Futuro”, ao contrário de reduzir as desigualdades e garantir o desenvolvimento, jogou o país nas garras do neoliberalismo mais voraz, cujas consequências a população brasileira ainda sente na pele.

Estão aí os juros mais altos do mundo, as privatizações do patrimônio público a preço de banana e a destruição dos direitos trabalhistas e previdenciários. De sexto país no ranking mundial, o Brasil despencou para a 12ª colocação.

Foi a Operação Lava Jato e seu então todo poderoso juiz Sérgio Moro quem aprofundou o processo golpista, com a condenação e prisão, sem provas, do na época ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, viabilizando assim a vitória nas eleições de 2018 de um ex-capitão, defensor da tortura e de torturadores.

Além de ter sido juiz parcial, Moro atendeu aos interesses de setores dos Estados Unidos e seus podres não param aí.

O advogado Rodrigo Tacla Durán, perseguido por Moro durante a Operação Lava Jato, deve depor nos próximos dias e, ao que parece, tem provas contundentes envolvendo corrupção grossa do ex-juiz e da chamada “República de Curitiba”.

Com toda razão Lula, agora, pela terceira vez, presidente da República, tem dito que foi Moro e sua campanha contra o PT, a Petrobras e as empreiteiras nacionais, quem possibilitou a vitória de Bolsonaro.

Foi o discurso de criminalização da política feito por Moro que possibilitou também o surgimento de algumas figuras deploráveis que povoam, em todos os níveis, as casas legislativas do país.

Como a inelegibilidade de Bolsonaro é dada como certa, a direita e a extrema-direita estão fazendo de tudo para reabilitar nomes que consideram importantes. Pessoas que acreditam possam funcionar como catalizadores e alavancas para projetos conservadores e golpistas em curso.

O leitor/leitora que chegou até aqui deve estar se perguntando: mas será que Zema, que não sabe nem quem é Adélia, tem capacidade para articulações deste porte?

Ele obviamente não, mas por trás dele estão poderosas entidades, think tanks, instituições e corporações nacionais e internacionais que trabalham com o que há de mais sofisticado em termos de métodos para a conquista de corações e mentes.

Entidades que apostam suas fichas em qualquer um que possa representar seus interesses agora e no futuro.

Zema, como seus colegas governadores de extrema-direita do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, e de São Paulo, Tarcísio de Freitas, estão entre esses nomes.

Não por acaso esses senhores venceram nos estados mais importantes da federação.

Não por acaso esses senhores venceram nos estados mais importantes da federação.

Uma solenidade marcada pelo simbolismo pátrio como a Inconfidência Mineira não deixa de ser oportunidade ímpar para tentarem vender a ideia de que golpistas são democratas e que esses inimigos do Brasil e do povo brasileiro são os verdadeiros patriotas.

E os menos avisados talvez nem percebam que Tiradentes e seus ideais estão sendo esquartejados outra vez.

P.S. Se acontecer a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito Mista (CPIM) sobre os atos golpistas de 8 de janeiro, ela será palco privilegiado para esse tipo de embate que acabo de abordar.

De um lado os fatos, comprovados por testemunhos, depoimentos e imagens. De outro, os golpistas valendo-se de fake news, distorções e manipulações, tentando convencer a sociedade brasileira de que o governo recém-empossado teria sido conivente com um golpe contra si mesmo.

Qualquer semelhança com quem atribui Medalha da Inconfidência a Temer e Moro por relevantes serviços prestados à pátria não será mera coincidência.

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.

*Viomundo

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