Em carta aberta, lideranças indígenas do Vale do Javari denunciam ameaças de invasores; temem o mesmo fim de Bruno e Dom

Em carta aberta, lideranças indígenas do Vale do Javari denunciam ameaças de invasores; temem o mesmo fim de Bruno e Dom

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A despeito das inúmeras denúncias do movimento indígena da região e da repercussão do assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, mais de 30 indígenas que navegam pelo rio Itacoaí ficam sob a mira dos invasores

Por Lígia Apel, da Assessoria de Comunicação do Cimi Regional Norte I

“Queremos ajuda, pois queremos viver. Toda a vida que habita a floresta é importante e defenderemos nossos irmãos e irmãs sempre. Seguiremos fortes até o fim”.

Assim finaliza a carta aberta escrita pelos povos indígenas da Terra Indígena (TI) Vale do Javari. A carta é um pedido de socorro, pois suas vidas vêm sendo constantemente ameaçadas.

Divulgado pela imprensa e redes sociais nos últimos dias, a Carta da Associação dos Kanamari do Vale do Javari (Akavaja), datada do dia 17 de novembro, relata uma suntuosa investida contra a vida das pessoas por parte de invasores que saqueiam o território indígena.

De acordo com o relato, a abordagem dos invasores contra os Kanamari aconteceu no dia 9 de novembro.

Os Kanamari compunham um grupo de, aproximadamente, 30 indígenas, entre eles muitas mulheres e crianças, que retornavam de um encontro na aldeia Massapê, no rio Itacoaí. Ao passarem por uma embarcação de pescadores não indígenas, logo perceberam que estavam saqueando o território, pois a embarcação estava cheia de quelônios, caça e peixes.

Uma das lideranças recebeu proposta de suborno para que não fossem denunciados. “Na conversa, os pescadores tentaram convencer o parente Kanamari a não denunciar a situação, oferecendo tracajás como pagamento pelo silêncio”.

Outra liderança, ao questionar os motivos da insistência em invadirem o território, foi ameaçada. O invasor apontou a espingarda para seu peito e disse, claramente, que todas as lideranças iriam ter o mesmo fim do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips.

“Vou tirar a máscara para você ver meu rosto e te avisar que por conta de atitudes assim que Bruno e Dom foram mortos pela nossa equipe e você será a próxima”, relata a liderança ameaçada na Carta.

Não identificada por questões de segurança, a liderança concedeu entrevista ao site Amazônia Real, e disse que as invasões não cessaram.

As conclusões oficiais do caso dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, em junho desse ano, não trouxeram amparo ou proteção aos indígenas, muito menos, resolução para o caso.

“Vou te falar uma coisa. Não adiantou a gente fazer manifestação. Não adiantou trazer equipe grande [de autoridades] no auditório da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Foi tudo temporário. As invasões continuam”, desabafa a liderança.

Em outra reportagem do Amazônia Real, cujo conteúdo informa que a Ordem dos Advogados do Brasil no Amazonas pretende levar o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, outra liderança disse sofrer ameaças há meses.

Afirma também que depois que “Colômbia” – suposto mandante do duplo assassinato – foi liberado da cadeia, os invasores se sentiram encorajados para fazer abordagens ainda mais hostis.

“Após a soltura de Rubens Villar Coelho, conhecido como ‘Colômbia’, os pescadores passaram a ficar mais “agressivos” e voltaram a invadir a TI Vale do Javari.

Segundo a liderança, “essa foi a primeira vez, depois da morte do Bruno e do Dom, que um pescador teve coragem de chegar na gente assim”, revela a liderança na matéria.

Os indígenas da região relatam, incansavelmente, as situações de violência que vivem. Eles alertam sobre o risco que correm de serem assassinados a qualquer momento por grupos de invasores clandestinos, que adentram a floresta atrás de recursos naturais, principalmente, madeira, caça e pesca.

Somado a isso, há a intimidação de narcotraficantes que mantém abertamente suas atividades do lado peruano – a TI Vale do Javari faz fronteira com Peru.

Só esse ano foram feitas ao menos três denúncias a órgãos responsáveis pela proteção dos territórios e vidas indígenas.

Uma resposta à Polícia Federal (PF), datada de 17 de junho, que no decorrer das investigações sobre o assassinato de Bruno e Dom Phillips, desconsiderou “as informações qualificadas oferecidas pela Univaja em inúmeros ofícios, desde o segundo semestre de 2021”.

Uma resposta ao vice-presidente da República, Hamilton Mourão, em 20 de junho, que havia tipificado os assassinos de “apenas ribeirinhos que têm uma vida dura” e opinou que o assassinato deve ter ocorrido “em meio à embriaguez de final de semana”, desprezando os esforços das lideranças e da Univaja.

Em 2021, a organização indígena implementou a Equipe de Vigilância da Univaja (EVU), para realizar a autoproteção do território, pois o descaso já existia e era crescente a vulnerabilidade vivida por essas pessoas.

O crime hediondo cometido contra o jornalista e o indigenista comprovam a negligência do atual governo na proteção do território e dos povos indígenas do Vale do Javari.

Os documentos e ofícios produzidos pela EVU desde 2021, “apontam a existência de um grupo criminoso organizado atuando nas invasões constantes à TI Vale do Javari, do qual ‘Pelado’ e ‘Do Santo’ fazem parte”. Esse grupo é de caçadores e pescadores profissionais envolvidos no assassinato de Pereira e Phillips.

Enviados ao Ministério Público Federal (MPF), à Polícia Federal e à Fundação Nacional do Índio (Funai), os ofícios trazem descrição detalhada e fundamentada sobre as estratégias e ação dos criminosos.

“Descrevemos nomes dos invasores, membros da organização criminosa, seus métodos de atuação, como entram e como saem da terra indígena, os ilícitos que levam, os tipos de embarcações que utilizam em suas atividades ilegais”.

A carta de 17 de novembro é mais uma a ser registrada na Polícia Federal e apresentada a todos os órgãos governamentais responsáveis pela proteção ambiental, territorial e da vida dos povos indígenas da região.

Se o descaso continuar, se o Estado brasileiro continuar negligente com a vida dos povos indígenas na região, mais assassinatos ocorrerão.

Compreender para agir

Na busca por compreender a conjuntura de violências da região do Vale do Javari, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns e a Rede Liberdade produziram o relatório “Graves Violações de Direitos Humanos no Vale do Javari”, em setembro desse ano.

O objetivo do documento foi “fundamentar e sugerir recomendações para subsidiar o Grupo de Trabalho nomeado pelo presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luiz Fux, a respeito do tema, nos termos da Portaria nº 228 do CNJ de 22 de Junho de 2022”.

As entidades demonstram preocupação com a sobrevivência dos povos indígenas na região, especialmente, com os povos indígenas em isolamento voluntário.

A TI Vale do Javari possui o maior contingente de povos isolados no mundo. As organizações descrevem em mais de 70 páginas e documentam em outras 500, a história e o contexto de violências que sofrem aqueles povos.

“O atual cenário aponta para um quadro de ofensa sistemática dos direitos humanos e fundamentais dos povos indígenas da região, violando seus direitos à alimentação, à sobrevivência material e cultural e, sobretudo, exerce pressões sobre os povos isolados, que são empurrados ao contato involuntário, gerando-lhes mais riscos e mais conflitos em uma região já tão conflagrada”, informa o relatório.

O documento aponta ainda que o contexto de violência e violação dos direitos humanos na região é persistente, ignorado pelo poder público e articulado pelo narcotráfico e agentes de ilícitos ambientais.

Tal diagnóstico, além de corroborar com os incansáveis alertas dos indígenas da região, é mais um incontestável documento que comprova que a negligência do poder público torna os fatos que se repetem no Vale do Javari em “verdadeiras tragédias anunciadas”.

“Há no Vale do Javari um contexto de violência conhecido e há tempos ignorado pelo Poder Público. Marcada pela atuação do crime organizado, a região tem vivido um agravamento da situação a partir da articulação do narcotráfico com ilícitos ambientais como a pesca, a caça, o garimpo e a extração de madeira. (…) O potencial lesivo destes episódios tem se desenvolvido com a ausência de meios protetivos às vítimas, resultado da piora em deficiências históricas da FUNAI. O contexto tornava altamente previsíveis – verdadeiras tragédias anunciadas – episódios como o assassinato de Bruno e Dom”.

*Com Viomundo

 

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