LITERATURA: VOA, MEU PASSARINHO! Por Priscilla Amaral
Nem toda literatura para infância trata de metáforas e simbolismos, algumas são bastante realistas e servem como um documento histórico para reflexão. Assim é a obra de José de Mauro Vasconcelos, “O Meu Pé de Laranja Lima”, escrita em 1968 há 50 anos atrás. É uma obra autobiográfica em que o autor relembra sua infância vivida nos anos 20 no Rio de Janeiro.
Incompreensão, fome, surras homéricas, ausência afetiva da família e dos vizinhos fazem parte do cotidiano de Zezé, uma criança de cinco anos de idade. Com tudo, não perdendo a imaginação e inteligência, começa a ler e escrever precocemente, sendo levado à escola tornando-se o xodozinho da professora Cecília Paim, com quem cria uma intensa relação de amizade. Aliás, encontra carinho e a compreensão de adultos longe de casa, com um tio idoso, com um cantor de modas sertanejas a quem ajuda a vender as fitas de suas músicas, com o Portuga com quem no início tem uma antipatia e depois tornam-se melhores amigos, como pai e filho.
Minguinho ou Xuxuruca, apelido que Zezé dá ao Pé de Laranja Lima entra na história quando a família do menino precisa mudar para uma casa menor, por conta do desemprego do pai, e nela há um quintal com umas três árvores; quando lá chegam, dois de seus irmãos correm para as maiores adotando-as e a Zezé sobra uma bem pequena. Ao vê-lo triste e decepcionado, uma de suas irmãs, Glória, a única da família a defendê-lo, aconselha o menino a ficar tranqüilo, já que a árvore irá crescer e será uma ótima amiga dele. O que ocorre. Zezé e o pezinho de Laranja Lima tornam-se grandes amigos e confidentes.
A narrativa é intercalada pela poesia da imaginação de Zezé com a brutalidade da vida que vive, a mãe que precisa trabalhar a semana toda porque o marido está desempregado, a irmã mais velha de 17 anos, que estudou até o que atualmente seria o segundo grau e precisa ir trabalhar, a irmãzinha Glória de 15 anos que precisa cuidar da casa, o irmão Totonho, de 9 anos e Luis, seu irmãozinho de 3 anos. A pobreza é grande. O pai sem emprego está tornando-se alcoólatra. Ele e a filha de 17 anos descontam suas frustrações no pequeno. Os vizinhos que não agüentam suas molecagens bastante arteiras consideram-no o próprio Diabo.
A história é da cor de sépia com sombras intensas. Rimos com a leveza do menino e nos chocamos com a sua realidade. Acompanhamos Zezé cuidando com um carinho comovente de seu irmãozinho Luís, enquanto pergunta para a mãe e o pai se ele deveria morrer, já que é o capeta. Vamos sendo testemunhas da perda da inocência de uma criança de apenas cinco anos, sendo cobrada e responsabilizada como um adulto; dói, quando ele, após duas grandes surras dadas pelo pai e a irmã mais velha, deixando-o com hematomas e sem um dente, e após a morte de uma pessoa muito querida já não quer mais sonhar como uma criança de sua idade.
A história de Zezé vem para a literatura infantil brasileira no final dos anos 60 como um contraponto ao folclore dos Contos da Carochinha, de Figueiredo Pimental, ao lúdico de Monteiro Lobato em que as crianças são protagonistas soberanas de suas vidas e estão permitidas a brincarem do que desejarem e à poesia de Olavo Bilac e Cecília Meirelles para os menores.
Por que é necessário esse contraponto? Por que nem toda infância é cuidada com zelo. É preciso lançar luz à sombra para que tenhamos consciência sobre o mal. A infância é um período curto de nossas vidas em que podemos imaginar sem limites e brincar. E quando esses primeiros anos de vida são maltratados geralmente uma vida adulta segue sem alicerce.
Uma das passagens mais bonitas ao meu sentir de “O meu pé de Laranja Lima” é quando Zezé liberta seu passarinho interior, que simboliza sua inocência, em uma de suas conversas com Minguinho ou Xuxuruca. Assim, encerro o texto com a reflexão de que há muitas formas de prisão além de algemas e grades. Talvez uma infância maltratada seja uma delas.
“Cheguei em casa e fui direito a Minguinho.
— Xururuca, vim fazer uma coisa.
— O que é?
— Vamos esperar um pouco?
— Vamos.
Sentei e encostei minha cabeça no seu tronquinho.
— Que é que nós vamos esperar, Zezé?
— Que passe uma nuvem bem bonita no céu.
— Pra quê?
— Vou soltar o meu passarinho.
— Vou, sim. Não preciso mais dele… Ficamos olhando o céu.
— É aquela, Minguinho? A nuvem vinha andando devagar, bem grande, como se fosse uma folha branca toda recortada.
— É aquela, Minguinho. Levantei emocionado e abri a camisa. Senti que ele ia saindo do meu peito magro.
— Voa, meu passarinho. Bem alto. Vá subindo e pouse no dedo de Deus. Deus vai levar você para outro menininho e você vai cantar bonito como sempre cantou para mim. Adeus, meu passarinho lindo! Senti um vazio por dentro que não acabava mais.
— Olhe, Zezé. Ele pousou o dedo da nuvem.
— Eu vi. Encostei minha cabeça no coração de Minguinho e fiquei olhando a nuvem ir-se embora. — Eu nunca fui malvado com ele… Aí virei o meu rosto contra o seu galho.
— Xururuca.
— Que foi?
— Fica feio se eu chorar?
— Nunca é feio chorar, bobo. Por quê?
— Não sei, ainda não me acostumei. Parece que aqui dentro a minha gaiola ficou vazia demais… “
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